quinta-feira, 26 de abril de 2007

Quase

Estava na flor da idade, com o amor batendo a porta. Abraçou-o com todas as suas forças desejando ser aquele um momento único, em que o tempo parasse e ninguém mais existisse ao redor. Ninguém, pois não queria correr o risco de submeter-se a todas as outras energias que circulavam estranhamente sua vida. Por mais que tentasse ser forte, a influência sempre se sobressaía a todas as suas forças: era como se suas atitudes perdessem a autonomia e passassem a ser dirigidas por alguém quase inexistente.
Já era a segunda vez que se sentia daquele jeito: frágil e vulnerável a qualquer palavra alheia. Por se perder nas lembranças, a primeira não serviu como um exemplo claro de como deveria agir. Ele se via perdido em meio a repetição da sua vida. Era como se estivesse vivendo um momento pela segunda vez. Não igual, claro, mas com as mesmas conseqüências.
Passaram-se 6 meses. “Chegou a hora”, pensou ele. Fez então o que achava que deveria ser feito: pediu a mão daquela que era a única. Com toda a magia e sinceridade com as quais se conheceram, ele lembrou-se da primeira vez que a viu, e de como nervoso ficou de apenas se aproximar. Para ele, ela refletia toda a singularidade que ele jamais vira.
Casaram-se sob a bênção de suas religiões. E foram felizes, com um quase para sempre. Da união, brotou uma flor, que deram o nome de Maria: aquele que era pra ser a propagação dos sonhos que tiveram enquanto adolescentes, acabou se tornando o maior tomento na vida daquela mãe. Não que a filha não fosse bem vinda, mas sim porque foi a partir daquele momento que ela percebeu que nem sempre tinha a mesma pessoa ao lado.
Ele perdeu a ternura: tornou-se frívolo e indiferente para os próprios sentimentos. Era como se nada houvesse existido, e eles tivessem simplesmente acordado de um longo cochilo.
Os nove meses de gestação foram uma tortura, pois o amor que aquela mãe tanto sonhara estava incompleto. Muitos diriam que a paixão teria chegado ao fim, mas, então, isso também justifica a sua substituição por um sentimento tão frio e amargo?
A menina nasceu. Seus olhos grandes e escuros olhavam para o mundo como se aquele fosse o seu maior presente; e, ao aguardar pelo choro que anunciava a sua chegada, a pequena garota sorriu. Sorriu. Era a última vez em que ele também sorriria.
Dotada de gestos meigos e carentes, aquele bebê logo se tornou uma garotinha, ansiosa para descobrir os porquês de toda a existência. Não lhe faltava oportunidade de perguntar como e quando, de observar e, algumas vezes, de dizer o que achava. Parecia que sua voz de criança camuflava a grande mulher que ali habitava.
O tempo passou. Mas ele mal pôde ver o começar dos passos daquela pequena que havia crescido. Não só no tamanho: as provas vivas da vida a expôs numa roda gigante viciosa, onde mal se podia subir, já estava descendo novamente. E ela passou por tudo isso. O tempo também, e continua passando, porque ela ainda continua uma criança.
Ele olhava para aquela que refletia parte de sua existência e a via como o único amor que ainda restava, já que sua outra parte havia se perdido. Ele a olhava como um pássaro que observa sua prole no ninho, no entanto, pairando sobre o ar, pois nem mesmo os anos puderam dar a ele a coragem de que precisava para se dirigir a ela como sendo um pai e uma filha.
O tempo continuou passando.
Maria completava, enfim, seus 20 anos. Faltava apenas um ano para terminar sua graduação em Psicologia, e dali partiria para França, ou qualquer outro lugar que a levasse para bem longe. Qualquer outro lugar que fizesse dela o mesmo que a vida fez com todos os seus familiares.
Apesar das inúmeras perdas que sofreu, ela nunca perdeu o brilho e a magia da sua vida. Vida essa que mal tinha começado.
Ele, seu pai, havia assistido de perto, porém longe, a todas essas épocas e mesmo vendo tudo tão nitidamente, nada fez. “Ela mal pode saber quem sou”, ele pensava.
Os anos o castigavam como um inverno castiga os fazendeiros aos tirar-lhes as suas colheitas. Ele tinha deixado de viver a vida. Trocou o prazer de todo o mundo que o rodeava, pelo medo de arrepender-se de uma futura perda. Tê-la ali, mesmo longe, para ele, era ainda assim, te-la. Mais valia a incerteza de que seria rejeitado, do que a comprovação desse fato.
Maria foi embora, e como vivia sozinha, foi sem dizer para onde ou com quem.
Após alguns meses, ele recebe uma carta, onde o remetente assinava apenas como: “sua única filha.”
“Meu Pai,
Se somente hoje te escrevo, não foi pela falta de oportunidades, pelo contrário: todos os dias me davam motivos novos para eu te dizer como estava, o quanto tinha crescido, e como era linda a vista daqui de cima.
Não sei se o senhor sabe, mas comprei um apartamento aqui em Sótca, de onde dá pra ver a cidade inteira, inclusive o mar. Diversas vezes me vi sentada aqui, escrevendo uma coisa ou outra para sabe lá quem, só para dizer que tudo estava no lugar.
Eu sempre tive saudades não sei do que, e sempre me senti acompanhada, mesmo estando tão só nesse apartamento quarto e sala. Tudo o que até hoje consegui foi fruto de muito esforço e dedicação, assim como você e Mamãe também o fizeram. Diferente de vocês, porém, eu nunca tive “um ao outro“. Mas posso dizer que ela sempre refletiu bastante o que você seria na minha vida. Era possível distinguir cada atitude, sendo como sua ou dela. A melhor escolha da sua vida, aposto.
Vida, Meu Pai. Se me pedissem hoje um exemplo de vida, eu diria você. Para mim, você é a mais bela representação de vida que já tive até hoje. A vida nunca nos aparece literalmente, no entanto sabemos que ela sempre está ali, presente em todo o lugar, olhando tudo ao nosso redor, e fazendo com que cada coisa aconteça exatamente como tinha de acontecer. A vida é uma quase sombra, que nos persegue, com a diferença que: não somos nós que temos a vida, pois essa não permite ser possuída, apenas manobrada. É ela quem nos possui, e dependendo das nossas atitudes, nós vivemos ou, simplesmente, existimos.
Essa é a nossa diferença, pois todo esse tempo você existiu, e eu vivi.
Triste ironia do destino me levar embora com a metade da sua idade, e com o dobro da sua vida. Hoje meu pai, eu viro a representação de vida para você, e sua única missão agora é que viva! Porque eu, ainda assim, continuo existindo.
Nos encontraremos, sem pressa, claro. Eu notei desde o começo que calma sempre foi a sua melhor qualidade. Mas cuidado: são as melhores qualidades que nos armam as mais perversas carapuças.”
Ele ficou incrédulo durante um bom tempo, e caiu em lágrimas. Mas percebeu, enfim, que o tempo, por um momento, pareceu parar.
Pareceu gritar: VIVA!

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